O número assusta: cerca de 250 milhões de pessoas consumiram drogas pelo menos uma vez em 2015. O número, equivalente a algo em torno de 5% da população adulta mundial, consta em relatório do Escritório das Nações Unidas contra a Droga e o Delito (ONUDC). O estudo também aponta a existência de cerca de 30 milhões de dependentes – ou seja, pessoas que usam drogas regularmente. E não foram apenas as substâncias ilícitas mais comuns, como maconha e cocaína, a dependência química como um teve que tiveram seu consumo aumentado nos últimos anos.
O II Levantamento Nacional de Álcool e Drogas (Lenad) traz indicadores preocupantes quanto à dependência alcóolica, que chegou a um índice de 3,6% entre mulheres e de quase 10% entre homens. Da mesma forma, o consumo de crack cresce vertiginosamente no Brasil, um dos principais centros produtores do planeta. Por outro lado, o consumo do tabaco diminui de maneira consistente: enquanto 35% da população brasileira fumava na década de 1990, em 2012 o número caiu para menos de 17%.
“Apesar da prevalência estar no álcool e no tabaco, duas drogas lícitas, o crack é responsável pelo maior problema social que bate à nossa porta, e aquele que mais preocupa a sociedade brasileira”, avalia a psiquiatra e especialista em dependência química Alessandra Diehl, vice-presidente da Associação Brasileira de Estudos em Álcool e outras Drogas (ABEAD).
De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), a dependência química resulta em 500 mil mortes a cada ano. E esse número cresce ainda mais se forem considerados os homicídios decorrentes do tráfico. Diante desse cenário, a guerra à dependência química deixou de ser um problema estritamente criminal e se transformou em caso de saúde pública.
Precisamos falar sobre dependência química
Estima-se que 2,6 milhões de brasileiros já utilizaram crack pelo menos uma vez na vida. Para frear essa realidade, a promoção da integridade física e psicológica (não apenas do dependente químico, mas também de sua família) assegura a saúde e a dignidade do indivíduo. Alessandra Diehl alerta como algumas políticas públicas de conscientização e treinamento profissional podem funcionar em rede – seja para prevenir ou para recuperar dependentes.
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Primeiro, a prevenção
O Brasil ainda investe pouco em políticas de prevenção. As campanhas educativas e preventivas precisam atuar efetivamente em escolas e comunidades, sobretudo em regiões onde os índices de vulnerabilidade são maiores. “Atualmente, estamos no caminho inverso, gastando muito mais com tratamentos do que investindo em jovens e crianças expostos à cultura do tráfico e do uso das drogas como afirmação de identidade”, avalia a psiquiatra.
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Triagem adequada
Nas unidades de atendimento de emergência e nas rotinas de consultório, muitas vezes o médico não investiga o uso de drogas no histórico clínico do paciente. Com uma triagem eficaz, o tratamento pode iniciar muito antes da instalação de um problema ainda mais grave. “Muitos médicos sequer perguntam, no pré-natal, por exemplo, se a gestante fuma cigarro ou usa cocaína. A gente vê isso no dia a dia, de forma natural, mas não deveria ser assim”, explica Alessandra. Para seguir o protocolo corretamente, o profissional deve identificar e avaliar usuários, fazendo uso de diferentes manuais disponíveis para diagnóstico.
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Preparação técnica
No meio desse processo, é fundamental que o paciente conte com apoio técnico de profissionais capacitados. Para isso, é necessário ter conhecimento sobre os tipos de droga e seu respectivo manejo clínico para estabelecer planos de tratamentos baseados em diferentes abordagens psicossociais. Deve-se ainda considerar as necessidades individuais, dadas as vulnerabilidades e comorbidades associadas, considerando sempre a situação física, psicológica e social em que o indivíduo se encontra. “Precisamos formar especialistas que não só estudem, mas que conheçam as dificuldades dos serviços, pois a empatia e o cuidado com o paciente formam o recurso mais bonito e mais necessário para que a rede possa funcionar.”
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Fim do estigma
Além dos obstáculos já enfrentados no início do processo de restabelecimento do indivíduo, a discriminação pode facilitar novas recaídas muito antes de a pessoa alcançar as primeiras conquistas. “Estamos falando de uma doença que ainda é repleta de mitos e de estigma. O material humano é a coisa mais rica que existe, e para lidar com usuários de drogas temos que ter capacidade de superar frustações”, diz a psiquiatra. Segundo ela, o fator humano, presente desde o atendente da Unidade Básica de Saúde (UBS) até o líder religioso e o médico, deve trabalhar a empatia.
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Desintoxicando dos problemas
Existe um gap entre a fase de desintoxicação e o pós-tratamento, período em que o indivíduo deve ser reinserido no convívio social. “Entretanto, essa pessoa provavelmente não tem uma profissão ou uma habilidade que garanta uma recolocação no mercado, porque ela passou os últimos anos usando drogas”, explica Alessandra. A ausência de qualificação, aliada à imagem de dependente químico, faz com que o usuário encontre dificuldades para voltar a ser socialmente produtivo. A partir de suporte psicológico e emocional, o indivíduo está apto para buscar aprimorar suas habilidades e garantir um emprego.
A psiquiatra chama atenção para as internações compulsórias, tema que esteve em voga no último ano e que tem eficácia contestada por alguns especialistas. Entre eles, Alessandra: “As famílias em desespero vão até o juiz pedir internação, como se esse fosse o melhor caminho para tratamento de um dependente químico, quando na verdade a gente sabe que o tratamento ambulatorial deve ser sempre a primeira tentativa”.
Por isso, diz ela, o Judiciário deve atuar mais próximo da saúde pública. “Nem todos os casos necessitam de internação, enquanto outros que precisariam de manicômio judiciário estão ocupando leitos psiquiátricos. Ou seja, enquanto não trabalharmos isso, seguiremos vendo as taxas aumentarem.”
Tratamentos em rede costumam ter bons resultados. Entre eles, é possível citar atividades físicas e até mesmo terapias alternativas, como mindfulness e grupos de apoio – como Narcóticos Anônimos (NA) e Alcóolicos Anônimos (AA). “Embora alguns profissionais e entidades rejeitem, é preciso reconhecer o trabalho dessas redes quando o poder público se omite”, salienta Alessandra.
Fonte: secad